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sábado, 27 de abril de 2024

Uma Apreciação Crítica do livro de Rudolf Bultmann (Parte 2)," JESUS CRISTO E MITOLOGIA"

27.04.2024
Do blog de TIAGO ABDALA 27.06.09

O autor lida com a relação entre hermenêutica e filosofia, especialmente com a filosofia existencialista, no capítulo quatro (p. 36-47). Busca demonstrar como a filosofia influenciou certas escolas teológicas na interpretação bíblica, a fim de validar o argumento de que todo intérprete se dirige ao texto debaixo da influência de certas pressuposições. Há uma diferenciação entre pressuposições metodológicas na exegese, que Bultmann entende como legítimas, e pressuposições quanto ao resultado que determina o estudo hermenêutico, consideradas inadequadas e ilegítimas. Ele define o método como o sistema de indagação do texto, o qual varia conforme o interesse do leitor na abordagem de seu objeto de estudo. O autor desenvolve o conceito de “relação vital”, o qual envolve a compreensão prévia de determinado assunto para o estudo deste mesmo assunto dentro de um texto.

Bultmann reconhece a validade dos métodos de investigação histórica no estudo bíblico, todavia, entende que a Bíblia é mais do que uma fonte histórica e se deve escutá-la no que tem a dizer sobre a verdade acerca da vida e da alma do homem moderno. A relação vital traçada pelo livro como metodologia para a leitura da Bíblia se dá na indagação humana acerca de sua existência que, para o autor, é idêntica à indagação a respeito de Deus.

Deste modo, a filosofia existencialista é vista como a concepção metodológica mais adequada para a orientação da exegese bíblica, pois, mostra ao homem a sua necessidade de existir, sem determinar a maneira pela qual esta existência deve ocorrer. Para Bultmann, a análise existencialista auxilia na leitura das Escrituras como a Palavra que interpela cada homem de modo pessoal e o chama a uma decisão. O fato de que a análise existencial não leve em conta a relação do homem com Deus, isto não a torna inadequada para o estudo da Palavra, mas revela um âmbito em que apenas a fé é capaz de compreender e mostra que Deus está além do próprio ser humano.

As observações de Bultmann quanto à impossibilidade de se ler um texto sem quaisquer pressuposições são pertinentes e importantes. Os próprios exemplos apresentados por ele, mostram como as pressuposições influem fortemente na interpretação dos conceitos bíblicos. É muito positiva a distinção entre pressuposições que moldam a metodologia e aquelas que influem no resultado, pois, auxilia o intérprete a entender que, apesar de não se poder ler um texto sem concepções prévias, tais concepções não podem determinar a conclusão da leitura de um texto.

A percepção sobre a necessidade de se interpretar a Bíblia não apenas como uma fonte histórica que possibilita a reconstrução do passado, mas, especialmente, como a Palavra de Deus que interpela o homem acerca da verdade quanto à sua vida e alma é elogiável e salutar. Nesse sentido, o autor demonstra uma sensibilidade ao propósito dos escritores bíblicos, os quais escreveram seus livros e cartas com uma preocupação didática quanto à vida cristã. Conseqüentemente, Bultmann chega à importante conclusão de que “na Bíblia encontraremos palavras autoritativas”.[1]

O uso da filosofia existencialista defendida por Bultmann como método hermenêutico é questionável. Para isso, ele segue alguns passos argumentativos que requerem atenção. Primeiramente, o autor afirma, citando uma frase célebre de Agostinho,[2] que o homem estabelece uma relação com Deus, ao buscá-lo, e possui um certo conhecimento prévio da ação de Deus em Cristo.[3] Deve-se observar que a argumentação de Bultmann não se sustenta dentro da estrutura do pensamento de Agostinho, pois, apesar deste reconhecer a sede humana natural por Deus, tanto na frase citada quanto na continuidade do texto no Livro I, capítulo 1 de Confissões, o pai da Igreja declara que na busca do homem por Deus há o risco de se invocar outro em lugar dele,[4] e a invocação ao Deus verdadeiro se dá apenas mediante a fé na Palavra pregada, não de forma prévia e natural.[5]

Não é de se admirar que o autor busque uma justificativa para esta sua observação fora do NT. Pois, a teologia do NT é clara em revelar a tendência natural do homem em se afastar do conhecimento disponível na criação a respeito de Deus, adorando a criatura em lugar do Criador (Rm 1.18-25). Além disso, apesar de possuir a imagem divina desconfigurada dentro de si (cf. Rm 2.14-15; 3.23; Tg 3.9), o ser humano só experimenta real relacionamento com Deus por meio da fé na pessoa e obra de Cristo (Jo 14.6, 9; Ef 2.1-18). E esta fé na ação de Deus em Cristo não é inata ao homem, mas, se torna possível quando ele ouve a mensagem do evangelho (Rm 10.17; Ef 1.13).

Um segundo ponto questionável defendido por Bultmann é a afirmação de que a indagação orientadora da interpretação bíblica diz respeito à existência humana, pois esta se iguala à indagação acerca de Deus. Diante disso, ele propõe a análise existencial como a mais adequada desde que foca na necessidade primária do homem em existir, o que implica em conhecer a Deus por meio de encontros no seu “aqui” e “agora”.[6] O problema maior com esta proposta filosófico-hermenêutica é que sua metodologia de estudo parte de fundamentos externos à própria Bíblia, isto é, não levam em conta a proposta bíblica quanto à existência do homem e de sua maior necessidade. Ainda mais, a proposta filosófica existencialista de Bultmann peca em limitar Deus e sua revelação aos encontros existenciais experimentados pelo ser humano.

Logicamente, o questionamento do homem acerca de sua própria existência, dentro das Escrituras, o levará a Deus como seu Criador e Sustentador (At 4.24; 14.15-17; 17.24-28; Cl 3.10; Tg 3.9; Ap 10.6). Todavia, a teologia neotestamentária não foca a existência humana como sua preocupação maior, mas sim, a glória de Deus e Sua revelação por meio de Cristo. Em outras palavras, o centro hermenêutico do NT é teológico/cristológico, não antropológico. A pergunta orientadora para a exegese, apresentada pelo NT não é “De que modo devo existir?”, mas sim, “Como a revelação de Deus em Cristo reconcilia a humanidade com o seu Criador e lhe possibilita um viver para a glória dEle?” (cf. Jo 1.14-18; 14.6, 9; Rm 1.18ss; 3.9-26; 2 Co 5.15-20; Ef 1.3-14; 4.20-24; Fp 2.5-11; Cl 3.9-10; 1 Pe 2.9-10; 2 Pe 1.2-4; et al). Deus não se limita à existência pessoal humana, mas a existência do homem depende totalmente de Deus e de Seu ato redentor em Cristo.

No quinto e último capítulo (p. 49-67), Bultmann concentra seus esforços para refutar argumentos contrários ao programa hermenêutico da desmitologização e do entendimento de Deus como ato. O autor busca demonstrar que a fala a respeito de Deus como ato implica na compreensão de que ele age de modo oculto na história, a ponto de não se poder descrever esta ação de modo objetivo ou científico, distinguindo-se da fala mitológica que enxerga Deus intervindo de modo objetivo na história e rompendo com a ordem natural dos acontecimentos. Também, argumenta que a visão acerca da atuação oculta de Deus nos acontecimentos da história não significa panteísmo, pois, por ser oculta esta ação difere dos eventos naturais em si e só é perceptível de modo pessoal, não como um enunciado geral a respeito da imanência divina.

O autor trabalha, ainda, com a possibilidade de se falar de Deus, sem incorrer em linguagem mitológica e propõe a rejeição desta em prol da linguagem analógica existencial, isto é, uma linguagem que descreve o encontro com Deus, da mesma forma como se fala das relações existenciais humanas. Isto não implica a limitação da existência de Deus meramente às experiências subjetivas e psicológicas humanas, pois, assim como os fenômenos (e.g. amor, confiança) que ocorrem nas experiências humanas entre amigos, pais e filhos não podem ser captados totalmente por uma metodologia objetiva e isso não anula sua existência, assim, também, a existência real de Deus não pode ser anulada por ser vivenciada apenas no âmbito da fé.

Na segunda parte do último capítulo, o autor defende o fato de que a nova auto-compreensão do crente se acha em mudança e avaliação contínuas, conforme se processam os encontros existenciais da fé em resposta à Palavra de Deus proclamada no aqui e agora. Isto não nega a ação de Deus escatológica de “uma vez por todas” em Cristo, mas mostra a necessidade de se compreender o evento redentor e a demonstração da graça de Deus proclamados pela Palavra como um evento atuante e que interpela o homem em seu presente. Assim, o paradoxo se estriba no fato de que a Palavra que ocorre aqui e agora se constitui a mesma “coisa”[7] com a palavra proclamada pelos apóstolos e cristalizada no NT.

Por fim, Bultmann conclui que o empreendimento da desmitologização se equipara àquele desenvolvido por Paulo e Lutero na doutrina da justificação somente pela fé. Pois, assim como a fé chama ao abandono de qualquer seguridade nas obras, a desmitologização chama ao abandono da confiança no conhecimento objetivante.

A proposta do autor de que a ação de Deus na história não é suscetível à comprovação científica, de certa forma, faz jus à infinitude divina que não pode ser compreendida de forma exaustiva pela razão limitada humana. Todavia, no pensamento bíblico, a natureza e o curso da história revelam a existência e poder do Criador: “Os céus declaram a glória de Deus; o firmamento proclama a obra de suas mãos. Um dia fala disso a outro dia; uma noite o revela a outra noite” (Sl 19.1-2).

O discurso paulino em Atos 14 comprova a perspectiva do cristianismo primitivo de que Deus age na história por meio dos acontecimentos profanos, “... Estamos trazendo as boas novas para vocês, dizendo-lhes que se afastem dessas coisas vãs e se voltem para o Deus vivo que fez o céu, a terra, o mar e tudo o que neles há ... Deus não ficou sem testemunho: mostrou sua bondade, dando-lhes chuva do céu e colheitas no tempo certo, concedendo-lhes sustento com fartura... ” (At 14.15, 17). Bultmann erra ao polarizar o agir de Deus na história como totalmente oculto, algo contrário à afirmação bíblica, e por limitar a ação divina simplesmente ao interior dos acontecimentos seculares, não a enxergando como a causa deles.[8]

Apesar de sua defesa da compreensão existencialista de Deus e de que ela não nega a existência dele fora da fé, algumas afirmações do autor, no livro, parecem contradizer isso. Quando afirma a ilegitimidade de se falar de Deus como o Criador cósmico ou como o Ser onipotente, capaz de fazer todas as coisas, e defende que tal linguagem só pode ser usada de modo pessoal e existencial, a partir do momento que o homem compreende a si mesmo como criatura de Deus ou percebe o seu poder o angustiando, Bultmann nega a possibilidade do conhecimento ontológico de Deus.[9] É difícil compreender como Deus existe fora da fé, se não se pode falar dele como transcendente a ela, mas, apenas dentro da auto-compreensão existencial.

Além disso, mesmo que a revelação do caráter e atributos divinos ocorram dentro da história do povo de Deus, isso não significa que Seu ser se limita à fé humana, isto é, Deus permanece sendo quem é, independentemente do homem encontrá-lo pela fé ou rejeitá-lo. Mesmo diante da recusa do ser humano em conhecer e crer no Deus revelado pela criação, ele continua possuindo seus atributos invisíveis, natureza e poder eterno (Rm 1.19-25).

Ao falar sobre a Palavra viva de Deus que teve sua origem num acontecimento histórico, isto é, em Jesus Cristo, ele não explica de modo claro o que este evento histórico traduz[10] e questiona se “a pessoa e a obra de Jesus Cristo têm de ser entendidas por nós como a obra divina da redenção”.[11] Somado a isso, Bultmann alega serem ilegítimas as concepções bíblicas cultual, em que Deus oferece seu filho como vítima propiciatória, e jurídica, a não ser que sejam vistas como símbolos da fé.[12] Assim, surge a questão sobre o modo pelo qual o autor aplicaria a desmitologização às afirmações joaninas de Cristo como o sacrifício ou propiciação pelos pecados dos homens (Jo 1.29; 1 Jo 2.1-2; 4.10), ou ao conceito forense da justificação humana pela fé em Cristo, desenvolvido por Paulo (Rm 1 – 5).

A eloqüência de Bultmann na parte final do capítulo cinco, correlacionando o empreendimento da justificação pela fé com o da desmitologização, não legitima sua proposta hermenêutica cujas rachaduras são perceptíveis no livro. Certamente, há observações importantes e pertinentes que chamam a atenção para a necessidade de um método hermenêutico relevante e honesto. Todavia, as pressuposições da análise existencialista são estranhas ao pensamento bíblico e, portanto, não contribuem no desenvolvimento de uma exegese adequada ao texto sagrado.

Cabe salientar, por último, a necessidade de uma revisão da grafia das expressões gregas, na última edição em português, que traz erros graves para uma publicação direcionada, especialmente, à academia teológica. A página vinte e sete, por exemplo, contém vários erros nítidos de acentuação e de uso errado da aspiração.

[1] Idem. p. 43.

[2] “Tu nos fecisti ad te, et cornostrum inquietum est, donec requiescat in te” (“Fizeste-nos para ti, e o nosso coração só encontrará descanso quando repousar em ti”).

[3] BULTMANN, Rudolf. Op cit. p. 42.

[4] Ver AUGUSTINUS, Aurelius. Confissões. Série: Os Pensadores. São Paulo: Nova Cultural, 2000. p. 37.

[5] Cf. Idem. p. 37-38. Ver, também, Livro II, Capítulo 6.

[6] BULTMANN, Rudolf. Op cit. p. 42-45.

[7] Termo usado na tradução. Ver Idem. p. 65.

[8] Cf. Idem. p. 49-50.

[9] Cf. Idem. p. 51, 55-56.

[10] Ver Idem. p. 62-65.

[11] Idem. p. 63.

[12] Idem. p. 56.

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Fonte:http://tiagoabdalla.blogspot.com/2009/06/jesus-cristo-e-mitologia_27.html

sexta-feira, 19 de abril de 2024

Uma Apreciação Crítica do livro de Rudolf Bultmann, "JESUS CRISTO E MITOLOGIA"

19.04.2024
Do blog de TIAGO ABDALA, 19.06.09
Por Tiago Abdala

O livro de Rudolf Bultmann "Jesus Cristo e Mitologia" é uma coletânea de palestras proferidas em diversas faculdades e universidades, muita delas situadas no continente norte-americano.[1] A obra é concisa, mas explica e defende importantes pontos da hermenêutica da desmitologização,[2] proposta por Bultmann, em sua abordagem do Novo Testamento. Dentro disso, questões como escatologia, mito e história, existencialismo filosófico e revelação são tratadas pelo autor.

No primeiro capítulo do livro (p. 11-18), procura-se mostrar a concepção, tanto de Jesus quanto da comunidade cristã primitiva, de que o reino de Deus se constituía num grande drama cósmico escatológico, que traria o julgamento sobre os injustos e inauguraria o novo tempo de felicidade para os justos. Tal perspectiva é entendida por Bultmann como mitológica e antiga, portanto, totalmente incompreensível para o homem moderno, o qual possui uma concepção de mundo científica e enxerga os eventos como uma relação de causa e efeito. Assim, ele propõe a necessidade e possibilidade de se interpretar o significado mais profundo por trás das concepções mitológicas da pregação neotestamentária, a fim de que esta continue a ser relevante para o homem moderno.

Sem dúvida, é importantíssima a percepção de Bultmann acerca da distinção entre a cosmovisão da época dos autores bíblicos e da era moderna. Qualquer método hermenêutico bíblico que se preze, precisa compreender o abismo histórico, científico e cultural interposto entre o leitor moderno e o autor bíblico. Além disso, o autor destaca com propriedade a necessidade de se perceber qual a relevância da mensagem do Novo Testamento para o mundo de hoje. Isto, certamente, é uma resposta à escola da “história das religiões”, a qual por meio do método histórico-crítico se preocupava em compreender o passado sem dar importância ao seu relacionamento com o presente.[3] Ele demonstra sensibilidade e perspicácia, ao questionar o uso meramente ético da mensagem de Jesus e, também, em reconhecer que há algo mais na pregação do reino de Deus além de sua redução ao evangelho social. Tais observações confrontam diretamente o liberalismo teológico, especialmente as propostas de Schleiermacher, Ritschl e Harnack que reduziram o cristianismo à ética do amor e justiça, e à preocupação com questões sociais.[4]

Em contraparte, a ligação direta que o autor faz do conceito de reino de Deus escatológico de Jesus com os círculos judaicos de sua época requer consideração. A única distinção que Bultmann faz entre as duas perspectivas escatológicas, diz respeito aos detalhes das descrições apocalípticas, presentes nos escritos judaicos, mas ausentes na mensagem de Jesus. Com exceção disto, para Bultmann, Jesus “não deixou de participar da expectação escatológica de seus companheiros”.[5] Porém, o autor falha em não observar que há diferenças profundas por trás das semelhanças superficiais.

Uma delas é a perspectiva exclusivista refletida nos escritos apocalípticos judaicos, pós-exílicos, a respeito do reino de Deus como pertencente a Israel e que promove sua soberania sobre as demais nações (Ver Assunção de Moisés 10.8-10; Jubileu 15.31; 31.7-17). Enquanto isso, o reino de Deus proclamado por Jesus requer o arrependimento e confiança nas boas novas do reino por parte de todos, sejam judeus ou gentios (Mc 1.15; 10.15; Lc 5.27-32). Os próprios filhos naturais do reino poderão ficar fora dele, ao passo que muitos gentios entrarão e participarão de seu banquete (Mt 8.11-12).

Outro exemplo que revela uma diferença marcante entre o judaísmo e a mensagem de Jesus é o conceito messiânico. Para o judaísmo, o Messias possui um caráter fortemente político (cf. Salmos de Salomão 17.21ss; 4 Edras 7.26ss; Apocalipse de Baruque 72ss), em nada se assemelhando ao Servo Sofredor, proclamado e vivenciado por Jesus, que dá a sua vida como resgate de muitos (Mt 20.28; Mc 8.29-31; 10.45).

O significado da mitologia desenvolvido por Bultmann, ainda no primeiro capítulo, requer avaliação e crítica. Especialmente, por igualar a visão mitológica antiga com a cosmovisão bíblica:

A mitologia ... Crê que o mundo e a vida humana têm seu fundamento e seus limites em um poder que está mais além de tudo aquilo que podemos calcular ou controlar. A mitologia fala deste poder de forma inadequada e insuficiente, porque o considera um poder humano. Fala de deuses, que representam o poder situado mais além do mundo visível e compreensível...
Tudo o que acontece é igualmente válido para as concepções mitológicas que se dão na Bíblia.

Os evangelistas, inclusive João, não parecem retratar a vida e obra de Jesus de Nazaré em termo míticos ou simbólicos. Sua preocupação é mostrar que são testemunhas reais ou pesquisadores de um evento que se deu no tempo e espaço, passível de constatação humana. Lucas, no início de seu evangelho, ressalta que sua obra é fruto de investigação cuidadosa acerca dos fatos ocorridos durante a vida, morte e ressurreição de Jesus (Lc 1.1-4). João mostra que a visão humana do primeiro século não era exclusivamente mitológica como Bultmann afirma, pois, diante do anúncio acerca da ressurreição de Jesus pelos discípulos, Tomé demonstra um ceticismo digno do homem moderno (Jo 20.24-25) e só crê quando se depara com o fato diante de seus olhos (20.26-29).

No Novo Testamento, a Primeira Carta de João tem como um dos focos principais refutar a perspectiva mitológica do gnosticismo incipiente e, para isso, o apóstolo descreve Jesus como um ser humano histórico, capaz de ser visto, ouvido e apalpado (1 Jo 1.1-4). Quando Paulo afirma a ressurreição física de Cristo, não deixa espaço para a idéia de mito, mas, fundamenta este fato no testemunho de várias pessoas que se encontraram com o Jesus ressurreto (1 Co 15.3-8). Igualar a perspectiva mítica de religiões antigas à cosmovisão do kerygma bíblico é um equívoco grotesco.

No segundo capítulo do livro (p. 19-28), o autor desenvolve o significado da escatologia neotestamentária, traçando paralelos e distinções entre o pensamento bíblico e o grego. Como resultado, Bultmann destaca que dentro do pensamento escatológico cristão se encontra a concepção de que este mundo carece de valor, por causa da maldade humana e devido ao juízo iminente de Deus. Assim, os homens são chamados ao arrependimento e ao cumprimento da vontade de Deus, na expectativa da felicidade futura e eterna, após a morte, que trará liberdade do pecado e comunhão serena com Deus. Para o autor do livro, tal perspectiva é entendida como mitológica, cujo sentido mais profundo significa estar aberto ao futuro de Deus para cada ser humano, o qual será de juízo para aqueles que se prendem a este mundo e não se abrem ao futuro divino.

A desmitologização da escatologia bíblica implica em ver o reino escatológico em seu início na vinda de Jesus e como um acontecimento presente. Assim, Bultmann entende que tanto Paulo, de modo parcial, e João, de maneira radical, iniciaram este processo hermenêutico em seus escritos. No capítulo seguinte (p. 29-35), de modo mais específico, propõe-se a demonstração da diferença entre a visão bíblica, que cria em milagres mediante a intervenção direta do sobrenatural sobre o mundo natural, e a perspectiva moderna que busca compreender os acontecimentos do mundo de forma racional, indagando a respeito de suas causas e recorrendo aos resultados das diversas ciências.

O autor chega à conclusão de que é necessário abandonar a visão de mundo mitológica bíblica, a fim de perceber a importância de seu sentido mais profundo, o qual consiste num chamado ao homem moderno para que abandone toda a segurança em suas próprias capacidades e recursos científicos e se disponha a encontrá-la somente em Deus. Assim, diante da invisibilidade e incompreensibilidade de Deus no âmbito do mundo e pela razão humana, a fé consiste em estar aberto para encontros existenciais e pessoais com Deus, o qual permanece um mistério.

As observações e propostas de Bultmann nestes dois capítulos, resumidos acima, mostram-se deficientes em alguns pontos. Primeiramente, não se pode dizer que Paulo e João iniciaram o processo de desmitologização da pregação escatológica de Jesus, pois, ainda que enxergassem certos acontecimentos ocorridos com Cristo e a partir de sua ressurreição como cumprimento das esperanças proféticas, isso não os levou a descartar a cosmovisão bíblica de milagres e da ação do sobrenatural neste mundo. É verdade que para Paulo a ressurreição de Cristo marcava o início da era escatológica (1 Co 15.20-23; 2 Tm 1.10), mas seu cumprimento pleno é visto, ainda, como futuro, na segunda vinda dele e na ressurreição/transformação dos que lhe pertencem (1 Co 15.23, 50-57; cf. 2 Tm 4.1; Tt 2.13). Já participamos dos últimos dias, mas ainda não completamente. Portanto, a citação de 1 Coríntios 15.54 pelo autor do livro,[6] como indicação de uma compreensão paulina do cumprimento presente das expectativas escatológicas, é totalmente inadequada e fora de contexto, já que Paulo faz este pronunciamento diante de algo que ainda está por se cumprir, não como uma realidade completamente presente (tóte genésetai ho lógos ho gegramménos, katepóthe ho thánatos eis nîkos).

Além disso, a suposta desmitologização radical de João, interpretando o julgamento e ressurreição escatológicos como ocorridos totalmente na ressurreição de Jesus (“Para João, a ressurreição de Jesus, Pentecostes e a parousia são um só e mesmo acontecimento”[7]), conforme defende Bultmann, não pode ser sustentada diante de um exame mais acurado da escatologia joanina. Por exemplo, no evangelho há a menção da ressurreição futura no “último dia” (Jo 6.39-40, 44, 54) e de um juízo ainda por se dar no “último dia” (Jo 12.48). Na primeira Epístola, a parousia é um acontecimento futuro que se aguarda com esperança, não um evento concretizado no passado (1 Jo 3.2-3).

Outro ponto baixo, dos dois últimos capítulos resumidos, se dá quando o autor busca explicar o significado de fé na proclamação neotestamentária. Sem dúvida, ele acerta em dizer que fé implica em deixar a confiança em si mesmo e depositá-la exclusivamente em Deus (cf. Gl 3.1-13). Todavia, a fé na pregação bíblica não se perfaz simplesmente num abandono abstrato da própria seguridade para se lançar num encontro existencial com o divino, mas, requer, também, atitudes específicas como a confissão de que os pecados pessoais ofendem a santidade de Deus e afastam o ser humano dele, além da confiança na salvação oferecida por Ele, em sua infinita graça, mediante seu Filho, que torna possível a reconciliação entre o homem e Deus (Rm 3.9-26; Ef 2.1-18).

Portanto, a fé não subentende o abandono da razão, como propõe Bultmann, mas o uso desta para entender a mensagem clara e inteligível do evangelho, depositando a confiança em tal mensagem. A mudança de vida mediante a fé em Cristo se caracteriza pela compreensão da verdade e uma transformação radical no modo de pensar, conforme o ensino paulino (Ef 4.17-24). Ainda que Deus seja incompreensível, Ele é cognoscível e sua ação redentora pode ser vista na história humana mediante a vida, morte e ressurreição de Jesus Cristo (Rm 5.8; Hb 1.1; 1 Jo 4.9-16).

[1] BULTMANN, Rudolf. Jesus Cristo e Mitologia. São Paulo: Novo Século, 2003. p. 7.
[2] Idem. p. 37
[3] HASEL, Gerhard. Teologia do Antigo e Novo Testamento. São Paulo: Academia Cristã, 2007. p. 329-330.
[4] Ver síntese do pensamento destes teólogos em OLSON, Roger. História da Teologia Cristã. São Paulo: Vida, 2001. p. 557-568.
[5] BULTMANN, Rudolf. Op cit. p. 12.
[6] BULTMANN, Rudolf. Op cit. p. 26.
[7] BULTMANN, Rudolf. Op cit. p. 27.
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Fonte:http://tiagoabdalla.blogspot.com/2009/06/jesus-cristo-e-mitologia.html

segunda-feira, 25 de julho de 2016

Eta Linnemann – Um testemunho da graça de Deus

25.07.2016
Do blog POR UMA NOVA REFORMA,15.07.2013
Postado por Fernando Paiva

Se pensássemos em termos de lógica humana, a teóloga alemã Eta Linnemann (1926 – 2009) jamais se tornaria uma crente autêntica, tampouco uma defensora da inerrância bíblica. Nascida e criada no seio da Igreja Luterana da Alemanha, durante a infância frequentava uma pequena comunidade, precariamente atendida por jovens pastores iniciantes, e na adolescência teve aulas de confirmação com um ministro o qual, segundo a própria Eta, “não era nascido de novo”. Ao final da Segunda Guerra Mundial, profundamente insatisfeita com a frieza na igreja da qual era membro, a jovem Eta Linnemann teve seu primeiro contato com um pastor verdadeiramente crente, que lhe falou sobre conversão. Aquele ensino a despertou para o Evangelho, levando-a a ler a Bíblia diariamente, e logo sentiu desejo de estudar Teologia. Com isso, matriculou-se na Universidade de Marburg, onde vivenciou experiências que afetariam radicalmente a sua vida.
 
Marburg significava Rudolf Bultmann”, conforme ela mais tarde sintetizou. O pensamento de Bultmann, famoso teólogo da neo-ortodoxia (na verdade, neoliberalismo) que rompera com Karl Barth, imperava naquela Universidade, como em muitas na Alemanha. Ou, em outros termos, ali reinava o método histórico-crítico de interpretação bíblica, e naquele ambiente Eta Linnemann teve sua formação teológica, sendo aluna dos mais renomados teólogos adeptos desta corrente interpretativa, notavelmente liberal. Um momento marcante para a jovem aluna foi a aula em que o próprio Rudolf Bultmann, comentando 1Coríntios 15:3-4 (“que Cristo morreu pelos nossos pecados, segundo as Escrituras, e que foi sepultado e ressuscitou ao terceiro dia, segundo as Escrituras”), afirmou: “aqui, Paulo não está no normal de sua teologia, porque está falando da ressurreição de Jesus Cristo como se fosse um fato histórico”. Com tais palavras, o mestre procurava retirar do coração de Eta e demais alunos a crença na ressurreição do Senhor Jesus! Nos anos seguintes, os teólogos de Marburg, incluindo Bultmann, desconstituíram o ensino sobre vários outros pontos cruciais das Escrituras, afirmando claramente que diversas passagens eram mitos, ou adições indevidas de homens motivados por questões particulares de sua época e circunstância histórica. O lema era “ler a Bíblia como se Deus não existisse”!
 
Eta Linnemann foi aluna brilhante, concluindo seu doutorado sob a orientação de Rudolf Bultmann, tendo como tema uma crítica no Evangelho de Marcos, e em seguida tornou-se professora de Teologia, vindo a ser admitida na seleta Sociedade para Estudos do Novo Testamento, organização composta por destacados teólogos de orientação liberal. Porém, diante de um aparente sucesso, a teóloga Eta vivia em crescente frustração, convencida de que todo o seu estudo não a conduzira ao Senhor, nem sequer tinha utilidade na pregação do Evangelho. Então, ainda em Marburg, orientando alunos nas dissertações de conclusão de curso, teve o coração novamente aquecido ao ler a tese de um aluno que relatava milagres recentes acontecidos em igrejas na África. Como foi estarrecedora aquela notícia, para uma mulher que já não acreditava em milagres!
 
Alguns meses depois, ministrando em uma turma na qual alguns realmente demonstravam evidências de conversão, a professora Eta foi surpreendida com a notícia de que um pequeno grupo de alunos começara a orar por ela. Pouco depois, diante de insistentes convites de alunos para que participasse de reuniões de oração, Eta Linnemann compareceu a um desses encontros, onde percebeu um claro mover de Deus, que ela reconheceu como sendo a realidade da justificação pela fé em Cristo. Ela continuou frequentando reuniões como aquela, cada vez mais tocada pela mensagem da graça de Deus, até que, numa delas, diante do apelo feito pelo ministrante, para que, se alguém desejasse entregar a vida a Jesus, erguesse a mão, Eta percebendo a voz do Senhor, converteu-se ali mesmo. E, sinceramente arrependida de toda a sua experiência como teóloga bultmanniana adepta do método histórico-crítico, uma Eta Linnemann já convertida e totalmente transformada passou a frequentar a Escola Bíblica Dominical de uma igreja cristã, como aluna, com outros crentes de dezesseis a setenta anos de idade, disposta a aprender as verdades fundamentais do Evangelho!
 
Eta Linnemann foi expulsa da Sociedade para Estudos do Novo Testamento, o grupo de intelectuais de cunho liberal da Alemanha. Mas não deixou de ser professora universitária de Teologia. Desde sua conversão, a teóloga Eta, crente em Cristo Jesus, passou a defender a veracidade, confiabilidade e inerrância das Escrituras, tendo como um de seus alunos de doutorado o Rev. Augustus Nicodemus Lopes, pastor, professor e teólogo brasileiro igualmente defensor da supremacia bíblica. Além disso, Eta Linnemann escreveu livros nos quais reafirma a inerrância da Bíblia e contesta o método histórico-crítico. Duas de suas obras foram lançadas em português pela Editora Cultura Cristã: “A crítica bíblica em julgamento” e “Crítica histórica da Bíblia”.
 
A história de Eta Linnemann é um poderoso testemunho da graça de Deus e do poder do Evangelho para a salvação de pecadores. Desde a infância, frequentando uma denominação fria, burocrática, onde se vivia um cristianismo meramente formal, passando por uma escola de Teologia que, sem exagero, poderia ser descrita como um cemitério da fé cristã, esta mulher de Deus trilhou caminhos errantes, mesmo em um meio teoricamente cristão. Foi tentada em seu ego, o que é uma das mais formas de tentação mais perigosas e difíceis de se resistir. Tudo indicava que seria mais uma famosa e arrogante teóloga liberal, cercada por admiradores, aplaudida entre os intelectuais alemães e destinada à condenação eterna. Mas, pela sublime bondade do Senhor, tornou-se crente e fervorosa defensora da Palavra de Deus. Glórias sejam dadas ao Todo-Poderoso, que nos surpreende com Sua maravilhosa graça!
 
“Testemunho de Eta Linnemann”.
disponível em: http://mcapologetico.blogspot.com.br/2010/08/testemunho-de-eta-linnemann.html. 

“Augustus Nicodemus - O dilema do método histórico-crítico”. 
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Fonte:http://novomanifestoreformado.blogspot.com.br/2013/07/eta-linnemann-um-testemunho-da-graca-de.html