Uma das maiores histórias já contadas é a
história de um homem tentando voltar para casa. Ele esteve lutando na
maior guerra da sua era, mas agora o seu maior desafio reside logo à sua
frente: voltar para casa. O seu nome era Ulisses, e sua história é
contada na grande obra de Homero, A Odisseia.
O problema de Ulisses não era que ele
meramente não sabia o caminho. Era que de alguma forma, depois ter ido
embora, o mundo havia se tornado maior. Os obstáculos haviam se tornado
maiores (ele derrotaria Ciclope ou viraria o seu jantar?). As escolhas
haviam se tornado mais agonizantes (ele perderia o seu navio inteiro
para Caríbdis ou apenas alguns homens para Cila?). E as tentações haviam
se tornado mais fortes (não apenas Sereias, mas a belíssima Calipso
tentando-o a abandonar o seu lar de uma só vez).
Em diversos momentos da
história, você se pergunta se Ulisses irá mesmo voltar para casa. E não
apenas isso: será que ele encontrará a sua esposa e seu filho, o seu
lar e seu reino, como ele os deixou? Mais importante de tudo, irão eles
encontrar o mesmo homem de vinte anos atrás?
2500 anos mais tarde, aquela história
continua ecoando conosco. Apesar de todas os avanços da tecnologia,
medicina e conhecimento que foram adicionados à nossa “qualidade de
vida”, lá no fundo o sentimento de que vivemos em um lugar habitável,
porém inquestionavelmente hostil, é tão inescapável para contemporâneos
quanto para os gregos antigos. Assim como diz a famosa frase de Thomas
Wolfe: “As coisas que ocorrem ao homem são trágicas. Isso é inegável no
fim de tudo. Todavia, precisamos negá-lo ao longo do caminho. A
humanidade foi moldada para a eternidade”. Designados para a eternidade
e, no entanto, nós nos vemos aqui, em um mundo que – com toda a sua
beleza – é ferozmente cruel e sem perdão. Sentimos que esse mundo não é
do jeito que devia ser, e, no entanto, não conseguimos descobrir o que
aconteceu ou como consertá-lo. Com o tempo tomamos conhecimento que a
conclusão de Wolfe estava correta, que, ainda que com grande esforço,
“você não consegue voltar para casa”. Nós não temos nem certeza de onde
está o nosso lar.
Essa história sobre deixar a casa para
trás e precisar voltar, mas sem saber como ecoa conosco porque é uma
história bem mais antiga do que o épico poema de Homero e bem mais
pessoal do que o romance de Wolfe. É mais antiga, pois é parte da Grande
História ou Narrativa que Deus conta sobre os seus atos e
pronunciamentos que vão do princípio ao fim da História. É mais pessoal,
pois é a nossa história, sua e minha. É a história da falta de repouso,
daquele vazio dentro de nós que simplesmente não vai embora, não
importa quão agradável a vida se torne.
Ao contemplarmos esse problema, olhamos
para o problema que reside no coração da história bíblica, aquilo que os
teólogos cristãos se referem como Queda. Isso é uma questão de teologia
bíblica. Buscaremos entender a Bíblia como uma narrativa singular
divinamente inspirada, uma revelação do propósito e plano de Deus para a
humanidade que se desdobra em tempo e espaço. Ao considerarmos a
história inteira da Bíblia a partir dessa perspectiva, eu espero que
entendamos melhor não somente a nossa própria condição – o que significa
que todos nós verdadeiramente abandonamos nossa casa – mas como de fato
também podemos voltar de novo.
A história da Queda
A história da Queda começa no Paraíso.
Deus criou Adão e Eva e os colocou em mundo perfeito para que
refletissem a sua glória. Ele providenciou que eles tivessem tudo o que
precisavam. Ele lhes deu um trabalho significativo, prazeroso e
gratificante. Ele os deu um ao outro. E ele os estabeleceu como
subgovernantes sobre toda a criação. Entretanto, havia apenas um limite
que ele colocou por cima da liberdade e autoridade deles. Havia uma
árvore no Jardim do Éden, a Árvore do Conhecimento do Bem e do Mal, da
qual eles não deveriam comer. Neste cenário, aparece Satanás ocupando o
corpo de uma serpente.
Satanás tenta Adão e Eva a fazerem a única coisa
que não deveriam fazer: comer da árvore proibida. Incrivelmente, eles
caíram no seu esquema e escolheram desobedecer a Deus. Ao consumarem o
ato, eles passaram de um status de plena ausência de culpa diante de
Deus e de si mesmos, para um status de desonra, vergonha e condenação
moral.
Imediatamente tudo muda. Porque
decidiram se rebelar, Deus julga Adão e Eva. A vida será cheia de dor,
sofrimento e tristeza. E mais: eles foram expulsos do Paraíso e exilados
do seu lar. Não sendo a expulsão temporária, um anjo empunhando uma
espada flamejante foi posicionado na entrada do Jardim assegurando que
eles nunca retornariam vivos. Todavia a sua expulsão física é somente o
prelúdio de um exílio muito mais profundo que não somente os afetará,
como todos os seus descendentes. Nós que fomos criados para viver para
sempre – moldados para a eternidade, como disse Wolfe – somos sujeitos
ao eterno exílio da morte.
Muitos em nossa cultura querem abafar
esse ponto da história. Eles reagem contra a história porque parece
apresentar uma imagem de um Deus perverso e petulante que reage
exageradamente ao flagrar os seus filhos com a mão dentro do pote de
biscoito.
Homens chamados a pregar e ensinar essa história precisam
estar preparados para tal reação e pedir às pessoas que retenham seus
julgamentos. É somente quando a história se desdobra e a magnitude dessa
rebelião se torna evidente que a maldição de Deus é vindicada.
Seguindo com a história, nós vemos que
as consequências da rebelião de Adão e Eva são mais profundas do que
pareciam no começo. Os filhos nascem, todavia não em inocência.
O âmago
da natureza de Adão e Eva foi corrompido e contorcido. Agostinho
descreveu essa natureza como “voltando-se para si mesmo”, de modo que a
natureza humana não reflete mais a glória de Deus, mas somente um senso
abarrotado de si mesmo. E tal natureza, juntamente com a culpa que a
acompanha, é repassada para seus filhos. Assim, as coisas não
continuaram normais depois da Queda. Pelo contrário, ela continua e se
aprofunda à medida que a criação termina em morte e decomposição. Como
W. B. Yeats memoravelmente disse e Chinua Achebe ilustrou: “as coisas se
despedaçam, o que é central não se mantém”. Satanás planejou exterminar
as almas de Adão e Eva. Não demorou muito e Caim efetivamente assassina
seu irmão Abel. Satanás planejou causar um obstáculo entre Adão e Eva
quando um culpou o outro em função do causaram.
Algumas gerações mais
tarde, Lameque ignora qualquer ideia que se possa ter sobre união
matrimonial e toma para si duas esposas. Caim comete assassinato por
causa de uma intensa cobiça; Lameque comete homicídio simplesmente
porque foi meramente ferido. E assim as coisas prosseguem, até que a
perversidade da humanidade cresce a tal ponto que que “toda a inclinação
dos pensamentos do seu coração era sempre e somente para o mal” (Gn 6.5
NVI). Deus decide que deve finalmente julgar os próprios homens e
mulheres que criou à sua própria imagem.
Deus envia o Dilúvio para destruir a
humanidade, poupando somente Noé e sua família, e o mundo tem um novo
começo. É como se Noé fosse um novo Adão que pode “tentar outra vez” num
mundo novinho em folha. O único problema é que Noé e sua família ainda
possuem a natureza caída que herdaram de Adão. Mais uma vez o pecado se
desenvolve bem onde foi deixado para trás. Eventualmente, a humanidade
volta exatamente onde estava nas vésperas do Dilúvio. Dessa vez. o alvo
de suas más intenções não é tanto a violência de um contra o outro, mas,
sim, contra Deus, à medida que procuram estabelecer a sua absoluta e
completa independência, simbolizada na Torre de Babel. Mais uma vez,
Deus julga a humanidade, dessa vez não a destruindo, mas frustrando-a.
Em Gênesis 11, a linguagem da humanidade é confundida, separando-nos um
do outro. Deus dispersa a humanidade pela face da terra e desse modo
frustra os nossos intentos idólatras.
Nesse contexto de divisão, frustração,
futilidade e morte, Deus chama para si um povo especial. Dando início
com Abraão, Deus separa o seu próprio povo do restante da humanidade.
Esse povo – um Adão coletivo – é chamado pelo nome de Deus. Eles devem
obedecê-lo e conhecê-lo como o seu Deus. Todavia, até aqui, a Queda
insiste em se fazer presente. Ló e sua família escolhem a perversidade
de Sodoma e Gomorra ao invés da piedosa sociedade com Abraão. Esaú
prefere os confortos desse mundo ao invés das promessas de Deus.
Finalmente, ainda que Deus tenha resgatado a nação de Israel da
escravidão do Egito e a trazido para a Edênica Terra Prometida, a nação
de Israel escolhe adorar a Deus na forma de ídolos, e, em seguida, Deus é
completamente abandonado em favor dos ídolos.
Aquilo que Israel fez coletivamente, os
seus reis fizeram representativamente. Israel exigiu um rei para se
parecer com as nações que não conheciam Deus, e o seu primeiro rei,
Saul, era exatamente o que desejavam. Alguns reis mais tarde, Salomão
começou bem, entretanto o seu coração se voltou aos ídolos em lealdade
às suas esposas estrangeiras. Jeroboão, o primeiro rei do reino do
norte, deliberadamente determinou o culto idólatra para enfraquecer a
lealdade das dez tribos à Jerusalém. Acaz, rei do sul Judá, demonstrou
em quem confiava ao construir uma cópia de um altar à Baal em Damasco e
inserindo-o no Templo de Israel.
Em resposta, Deus consistentemente
visitou o seu povo com julgamento. Repetindo Gênesis 11 e Gênesis 3,
Deus primeiro os separa e finalmente os expele, exilando-os da Terra
Prometida. Setenta anos mais tarde, o reino do sul de Judá retorna do
exílio, mas é evidente que o seu exílio espiritual continua.
Deus não
volta a habitar no Templo reconstruído, e o Santo dos Santos é deixado
vazio. Eventualmente, até mesmo os profetas caem no silêncio. No final
do Velho Testamento, o povo visível de Deus está num estado tão
arruinado quanto os gentios. Ambos estão diante da ameaça do eminente
julgamento de Deus. Mais explicitamente, as palavras finais do Velho
Testamento ecoam Gênesis 3, alertando que Deus virá e ferirá a terra com
uma maldição.
À medida que o Novo Testamento inaugura
um novo profeta, João Batista, ele aparece em cena e assume o legado de
Malaquias, advertindo o povo de que o juízo está próximo.
Porém, parece
que ninguém está ouvindo. Deus envia o seu próprio filho, Jesus, o qual
leva uma vida de perfeito amor e perfeita obediência, uma vida que não
deveria ter ofendido ninguém. Contudo, a humanidade se tornou tão
perversa que agora judeus e gentios tramam em conjunto para matar o
único homem que nunca mereceu morrer. Em conjunto, eles o pregam no
madeiro, na cruz, e declaram que o seu único rei era César.
Isso aconteceu há dois mil anos atrás.
Desde lá, a corrupção e a maldade da humanidade se expandiu muito mais e
com maior eficiência. No entanto, nada, de fato, mudou. Todas as
guerras que hoje ocorrem, toda violência e morte, a escravidão, os
genocídios que consistentemente marcaram os últimos cem anos, a
exploração de mulheres e crianças desejando gratificação sexual, até
mesmo a cruel indiferença entre o rico e o pobre, tudo isso têm sido
apenas um comentário estendido daquela primeira declaração de
independência contra Deus.
Qual será o fim da Queda? Qual será o
final dessa história? Um outro profeta chamado João, o apóstolo João,
nos conta. Em Apocalipse 18, nós vemos a Queda final, um dia no futuro,
quando este mundo cairá debaixo do julgamento final de Deus, para nunca
mais se levantar. Naquele dia, todos aqueles que por toda a história
persistiram em sua rebelde declaração de independência, os quais
escolheram o culto aos ídolos em oposição à Deus, serão deixados de fora
do céu, e o tormento angustiante do seu exílio no inferno durará por
toda a eternidade.
*Este artigo faz parte do 9Marks Journal. Tradução: Paulo R. de A. Santos. Revisão: Vinicius Musselman Pimentel. © 2016 Ministério Fiel. Todos os direitos reservados. Website: MinisterioFiel.com.br. Original: A Queda da Humanidade: História (1/5).Por: Michael Lawrence