05.05.2022
Do BLOG DO TIM CARRIKER
Por Timóteo Carriker
Nos últimos dois ou três anos o tema da vocação missionária voltou a
ser bastante ventilado. Nunca ficou muito distante da preocupação e
preparo missionários, mas o assunto recebe bem mais destaque
recentemente. Em muitos dos estudos e palestras uma vocação “geral” é
distinguida de uma “específica”, e por boas razões. Na ufania do desafio
missionário pode se interessar muito mais em saber onde se deve “ir”
(denominado frequentemente como “vocação específica”, mas que considero
melhor denominado como “direção específica”) do que como se deve se
conformar à imagem de Cristo e refletir as características de Cristo na
própria vida (“vocação geral”). A distinção entre “geral” e “específica”
trata disto e assim faz muito bem. Entretanto, há mais duas questões
envolvidas no assunto da vocação que não recebem a atenção que merecem:
primeiro, o lugar da “nossa” vocação dentro da vocação de Deus, e segundo, o desenvolvimento
da nossa vocação ao longo da vida. Vamos considerar cada uma destas
duas questões, a primeira nesta reflexão e a segunda posteriormente…
A vocação missionária dentro da vocação de Deus
Antes de pensar qual é o meu papel como cristão ou até mesmo o nosso
papel coletivo como povo de Deus, é essencial considerar a vocação de
Deus, e isto especialmente se o nosso papel tem algo a ver como
assemelhar-se a Cristo, isto é, se a nossa vocação tem a ver com o
sermos “imitadores de Cristo”. Não falo de vocação de Deus no sentido
dEle ser chamado por outro, pois não há ninguém acima dEle. Mas falo de
vocação em termos do “propósito” ou “plano” de Deus. Afinal, vocação tem
tudo a ver com isto.
Normalmente nós simplesmente pressupomos que saibamos o que é este
propósito ou plano em termos da redenção do mundo que, por sua vez,
entendemos cada vez mais como alcançar todos os povos pelo anúncio do
evangelho, a implantação da igreja e a demonstração da compaixão e de
justiça em termos concretos. Confesso que nem sempre o propósito
missionário parecia tão abrangente para mim. Como muitas, eu imaginava o
empenho missionário como uma só das diversas preocupações da
igreja… um só dos departamentos… um só dos ministérios, e não o
exercício que melhor definia o propósito da igreja. Com os anos e os
estudos, percebi, como muitos dos leitores, que a vocação missionária
parte de muito mais que a Grande Comissão, mas que permeia todas as
Escrituras para quem tem olhos para ler com atenção. Esta leitura mais
abrangente e mais inclusiva da vocação missionária já é consagrada pelo
menos no meio do movimento missionário e ganha cada vez mais respaldo de
estudiosos importantíssimos da Bíblia como o N.T. Wright. Foi também o
motor mestre por trás da Bíblia Missionária de Estudo (Baueri: Sociedade Bíblia do Brasil, 2014), uma novidade no mundo inteiro.
Não tão consensual, mas igualmente importante é o reconhecimento de
que redimir a humanidade significa o seu resgate integral e que a
justificação por Deus e a demonstração da justiça e da compaixão de Deus
andam de mãos dadas nas Escrituras… digo também nas Escrituras todas
mesmo que notoriamente nos Profetas e nos Evangelhos. Procurei deixar
esta missão “integral” explícita no livro O caminho missionário de Deus (terceira edição em Brasília: Palavra, 2005), que por sua vez foi uma revisão do livro Missão Integral
(São Paulo: Sepal, 1992). Hoje esta perspectiva de integralidade é
aceita pelas maiores instituições de cooperação missionária (Concílio
Mundial de Igrejas, Movimento Lausanne, a Aliança Evangélica Mundial)
mas a nível popular e entre alguns estudiosos ainda é mal representada e
entendida e assim encontra resistência, principalmente porque concluem
indevidamente que o discurso sobre “missão integral” depende do discurso
marxista, um equivoco imenso de quem não dá o trabalho de ler os documentos principais que defendem a integralidade da missão. Mas isto é assunto de outra reflexão…
Ora, a perspectiva missionária em termos da redenção dos povos é
muitíssima importante e sem dúvida reflete grande parte da preocupação
bíblica ao longo do desdobramento das Escrituras. Entretanto, por mais
importante que seja, é interessante que a Bíblia nem começa e nem
termina assim. Ou para dizer a mesma coisa de outra maneira, a Bíblia
não começa em Gênesis 12 e não termina em Apocalipse 7. Começa em
Genesis 1-2 e termina em Apocalipse 21-22, sendo nos dois casos, dois
capítulos intimamente vinculados. Para falar de modo simples e direto, a
vocação ou o plano de Deus é de resgatar aquilo que Ele criou. A origem
e o alvo final é a criação, não exclusivamente a humanidade, mesmo que a
humanidade tenha um papel primordial tanto na criação quanto na nova
criação. Da mesma forma que a Bíblia começa com a criação dos céus e da
terra, termina com o novo céu e a nova terra. Se a perspectiva
missionária na sua versão “integral” procurou resgatar os ensinos
bíblicos acerca da manifestação da justiça e da compaixão de Deus, alego
dizer que não é “integral” o suficiente se negligencia as implicações
da vocação de Deus para a criação toda e não apenas para a humanidade.
A base bíblica
Certo que surgem muitos protestos contra esta integralidade mais
abrangente. O principal é de natureza escatológica e se refere à
perspectiva bíblica sobre o destino deste planeta. É muito comum o
protesto que este planeta é destinado à destruição e ao fogo e logo vem a
mente a passagem cuja leitura superficial parece sustentar esta
perspectiva: 2 Pedro 3.1-8. É impressionante como uma só passagem
bíblica sobre a “destruição” do planeta é lembrada contra múltiplas
passagens que falam do plano divino de resgatar este planeta, tais como:
- Gênesis 1.4, 10, 13, 18, 21, 25; Deuteronômio 10,14; Salmo 24.1; Jó 41.11 A criação tem composição essencialmente benéfica
- Isaías 11.1-9 a salvação futura inclui o reino animal
- Habacuque 1.14 especifica a terra como o lugar da eventual plenitude do conhecimento da glória de Deus
- João 3.16 especifica este cosmos (kosmos é a palavra traduzida como “mundo”) como o objetivo do amor de Deus e pelo qual enviou Jesus como seu instrumento de salvação
- Efésios 1.9-10 especifica céus e terra como os objetos da sua reconciliação em Cristo
- Filipenses 2.9-11 o senhorio de Jesus inclui todos os habitantes do céu, da terra e debaixo da terra
- Romanos 8.18-26 fala explicitamente da salvação futura da criação
atual deixando de lado a qualificação de outra sorte ambígua de “nova”
(outra ou renovada) para “criação”
- Colossenses 1.20 obra de salvação abrange não só a humanidade, mas “todas as coisas, quer sobre o céu, quer sobre a terra”
- 1 Coríntios 15.22-28 antes da ressurreição final Cristo está reinando (“sujeitando) todas as coisas no céu e na terra
- 2 Coríntios 5.17 O ser humano salvo é literalmente nova criação e assim já contribui para o resgate da criação
- Apocalipse 21.1-4 a salvação futura envolve a descida do céu para a terra
De volta para 2 Pedro 3.1-8
Mas o que dizer de 2 Pedro 3.1-8 e a “destruição” por esta passagem
prevista? Uma leitura mais cuidadosa da passagem revela que tal
destruição futura pelo fogo se compara à destruição passada pela água,
isto é, pelo dilúvio, destruição essa, por sinal, muito abrangente.
Entretanto, aquela destruição não pode ser entendida como aniquilação
porque Noé se desembarcou no mesmo planeta que antes. Basta acrescentar
que fogo e água são mencionadas outras vezes nas Escrituras como
metáforas (não confunda metáfora com irrealidade) de purificação (Ml
3.1-4; 1Co 3.12-15). Enfim – e isto é de sumo importância missiológica –
a vocação ou plano redentor de Deus é de salvar aquilo que Ele próprio
havia criado e entregue à humanidade para administrar cuidadosamente (Gn
1.26-27; 2.15). Por isto a Bíblia começa e termina com este tema e o
recheio central (Salmos) é repleto de louvores por esta criação.
Mas se isto fosse a verdade bíblica, quais são as implicações para o
engajamento missionário e quais modelos deste engajamento encontramos
nas Escrituras, especialmente no Novo Testamento? Ou para dizer a coisa
de outra maneira: Jesus e os apóstolos incorporavam esta perspectiva?
Implicações para o engajamento missionário hoje…
Vou procurar compensar o pouco espaço que temos para tratar isto com
referência a outras leituras. Em relação ao ensino e à prática de Jesus,
recomendo os exemplos especialmente do livro, Jesus e a Terra – A ética ambiental nos Evangelho, de James Jones (Editora Ultimato, 2008). Mas mais importante que o ensino e a prática de Jesus – pois o seu contexto socioambiental certamente contribuiu para a sua prática ou não prática imediata – mais importante que isto foi o seu propósito e papel
no plano de Deus para a reconciliação de céus e terra, o que as
passagens citadas acima afirmam. E isto foi também exatamente o foco de
atenção dada pelo apóstolo Paulo que pouco falou sobre o ensino e o
ministério terrestre de Jesus.
Mas a pergunta ainda persiste: se Deus enviou Jesus para salvar o
cosmos (Jo 3.16), se Jesus veio para reconciliar todas as coisas nos
céus e aa terra (Cl 1.20), e ele veio para unir tudo que está no céu e
na terra (Ef 1.10), se o seu senhorio abrange céu e terra (Fp 2.9-11, Mt
28.18) e atualmente está colocando efetivamente todas estas coisas
debaixo da sua autoridade (1Co 15.22-28) para a eventual libertação desta
criação (Rm 8.18-26)… por mais importantes e incisivas que sejam estas
passagens por que não há mais enfoque ao longo das Escrituras nisto?
Novamente a resposta está no reparo da vocação de Deus. Logo no início das Escrituras, Deus criou a humanidade a sua imagem justamente para ordenar e cuidar a sua criação (Gn 1.26-27, incumbência, por sinal, dada para o “homem” como ambos macho e fêmea). Ou seja, a chave para o resgate sempre foi o ser humano, mesmo que o meio disto acontecer chegou a ser um, ou melhor, o
Filho do Homem. É exatamente esta a mensagem de Paulo em Romanos
8.18-26, só que não é qualquer humanidade, é a humanidade redimida. Por
isso o surgimento da nova criação, novos céus e nova terra, acompanhar a
redenção do povo de Deus em Apocalipse 21-22. E é justamente por isso,
que a grande ênfase, ao longo das Escrituras, está na redenção dos
povos, porque a redenção da criação é participa disto. Por exemplo, a
minha redenção última, não a minha “decisão de seguir Jesus” ou a minha
“eleição por Deus” é descrito diversas vezes na Bíblia, especialmente
nos escritos de Paulo, como a minha ressurreição corporal e o livramento
consequente do julgamento final. Isto é a minha salvação “ultima” no
sentido final (Jo 11.17-25; 1Co 15.52; Fp 3.11; 1Ts 1.10; 4.16). E esta
ressurreição, de acordo com as Escrituras, segue o exemplo da
ressurreição de Cristo e da se depende (Rm 6.5; 8.11; 1Co 6.14;
15.20-22; 2Co 4.14). E se considerarmos o final dos Evangelhos poderemos
concluir que a ressurreição corporal de Jesus significava a existência
ainda de ar para respirar, animais e plantas para comer e chão para
andar. Ou seja, a doutrina consagradíssima da ressurreição corporal é a
maior testemunha da necessidade de um mundo como aquele que conhecemos e
não alguma convivência nas nuvens.
O que esta pequena reflexão significa para o engajamento missionário?
Primeiro, o engajamento missionário continua enfocando a redenção nos
povos e a manifestação cada vez mais da justiça de Deus (justiça e
justificação nas Escrituras são dois lados da mesma moeda, não
dois assuntos um subordinado a outro). Isto significa que a
evangelização de modo completo, a plantação da igreja e o discipulado
das nações são o “arroz e feijão” do trabalho missionário, e isto
condicionado em obreiros que espelham e emanam a imagem de Cristo nas
suas vidas. Mas se o alvo desta redenção for a redenção eventual deste
mundo do modo que será chamado um dia de novo céu e nova terra, uma
séria de atividades humanas adquiram uma importância maior e certamente
os seguidores de Cristo não estarão ensinando os novos discípulos a
fugirem deste mundo, e sim, de redimi-lo. O enfoque será mundano no bom
sentido da redenção deste mundo em nova criação, não no mal sentido do
pecado.
Esta pequena afirmação exige muita elaboração e explicação e não há
espaço para isto aqui. Basta dizer por enquanto, que precisamos computar
a nossa vocação dentro da abrangência maior da vocação de Deus de
estabelecer uma nova criação, tarefa que é nossa também (Romanos
8.18-25). Isto dá muito pano para manga e precisamos conversar cada vez
mais sobre isto.
*****
Fonte: https://ultimato.com.br/sites/timcarriker/2016/12/04/a-vocacao-de-deus-e-nossa-vocacao/