O
pecado é uma das grandes justificativas da democracia. Com a “queda”
aprendemos que nenhuma esfera social – indivíduos, igrejas, partidos,
nações – ficou isenta dos efeitos do pecado
Escrevo
logo depois do primeiro turno da eleição presidencial de 2022. Diante
da extrema polarização do país, inclusive (ainda que não em porcentagens
iguais) do eleitorado evangélico, e diante da probabilidade de um
segundo turno apertado, deixando uns eufóricos e outros muito tristes, é
extremamente importante, seja quem for o candidato perdedor, que os
seus apoiadores evangélicos, mesmo lamentando o resultado, fiquem dentro
das normas democráticas de reconhecimento da legitimidade do vencedor.
Por que é tão importante que os evangélicos deem exemplo nesse sentido? Por causa da história. E por causa da Bíblia.
A história
Das
grandes correntes religiosas (cristãs e não cristãs), o protestantismo,
inclusive sua vertente evangélica, tem historicamente a relação mais
próxima com o desenvolvimento da democracia. Princípios como a soberania
popular, a ampliação do sufrágio, os direitos inalienáveis, a liberdade
religiosa e o estado não confessional tiveram seus primeiros defensores
entre os dissidentes protestantes do século 17 (os batistas, os
niveladores, etc.). Nas palavras de um dos primeiríssimos batistas, em
1614: “Que sejam [as pessoas] hereges, turcos, judeus ou o que for, não
compete ao governo puni-los”. Ou nas palavras de Roger Williams,
fundador da colônia de Rhode Island: “O estado não deve ser cristão, mas
meramente natural, humano e civil”.
Além
disso, elementos do ensino protestante evangélico e da sua vida
organizacional ajudaram a democratização: a dessacralização do poder
político; o “sacerdócio de todos os crentes”, que significava o direito à
dissidência individual; a ênfase na pecaminosidade universal, o que
sugeria distribuição de poderes e mecanismos de accountability; a vida
congregacional como treinamento em liderar, organizar e falar em
público; o incentivo à alfabetização... Ademais, fez uma grande
contribuição histórica ao desenvolvimento dos direitos humanos, sendo
uma das principais maneiras como o cristianismo operou contra a
tendência de idolatrar o estado. Sem falar da imensa contribuição
evangélica à evolução do humanitarismo.
É
verdade que muito disso aconteceu em outros tempos e em outros lugares.
Mas é significativo que, numa pesquisa de 2006, os pentecostais
brasileiros afirmaram, tanto quanto a população em geral, o valor dos
processos democráticos, preferindo um governo participativo a um líder
forte, e preferindo a separação entre Igreja e Estado.
A Bíblia
Será impossível aqui fazer justiça às implicações democratizantes que permeiam a Bíblia. Mas vejamos algumas pinceladas.
A
primeira afirmação bíblica sobre o ser humano fala da “imagem de Deus”,
polemizando com as ideias pagãs do Antigo Oriente Médio que atribuíam a
imagem de Deus somente ao rei. Ainda mais escandalosamente, a Bíblia
afirma que tanto homens como mulheres estão na imagem de Deus. As
implicações democratizantes disso são enormes.
Quando
a Bíblia fala em seguida da “queda”, aprendemos que nenhuma parte da
vida humana – bem como nenhuma esfera social (indivíduos, igrejas,
partidos, nações) – ficou isenta dos efeitos do pecado. É por isso que o
apóstolo Paulo, levantando uma doação das igrejas gregas para os
cristãos de Jerusalém, insistiu em ser vigiado por um delegado escolhido
por elas. Era questão de pecadores controlando pecadores. E nas leis de
Moisés, sobressai a ênfase na igualdade de oportunidade para participar
responsavelmente dos assuntos públicos.
O
projeto de Deus é que as pessoas sejam convidadas a participar
responsavelmente do governo do universo, até na maneira como Deus
constitui a igreja cristã. No que podemos chamar de as “cartas
constitucionais” da comunidade cristã (as listas de dons do Espírito em
Romanos 12 e 1 Coríntios 12), vemos a mesma ênfase. Apesar da grande
diferença entre as listas, o princípio da distribuição é o mesmo: o Deus
bíblico dá dons a todos, mas não dá todos os dons a ninguém,
estabelecendo assim a igualdade e a interdependência.
Temos
ainda a declaração radicalmente democrática de Gálatas 3.28, de que em
Cristo não há judeu nem grego, escravo nem livre, homem nem mulher. A
democracia ateniense excluía o forasteiro, o escravo e a mulher, mas
Paulo afirma explicitamente a inclusão dessas três categorias. Será que
ele se referia somente à vida eclesiástica? É improvável que o apóstolo
do Mestre que havia ensinado a parábola do Bom Samaritano dissesse que
esse princípio se aplicava somente à igreja e não ao comportamento do
cristão na sociedade.
Ainda
outro argumento bíblico pela democracia é o que podemos chamar de
recato político cristão. Não podemos (biblicamente) ser tão dogmáticos
quanto gostaríamos de ser a respeito das questões políticas. Isso, por
três razões.
Primeiro,
pela ausência de uma receita política bíblica. O judaísmo tem a lei de
Moisés e o islã tem a lei Sharia, mas o cristianismo não tem lei neste
sentido. Temos que relacionar, com fidelidade e humildade, a revelação
bíblica às realidades sociopolíticas do nosso próprio contexto.
Em
segundo lugar, pelas diferenças entre os mundos bíblicos e o nosso
mundo. O Novo Testamento foi escrito para uma pequena comunidade
transnacional que não controlava território e não tinha possibilidade
alguma de poder político. Por outro lado, o Antigo Testamento foi
escrito para uma comunidade nacional que de fato lidava com essas
questões. Mas nenhum país hoje está na situação do Israel do Antigo
Testamento. Por isso, em matéria de política, o cristianismo se
caracteriza por um certo recato, um não dogmatismo, um amplo espaço
livre de discordância legítima.
E,
em terceiro lugar, por causa da complexidade dos fenômenos políticos e
da natureza da política como a arte do possível, fazendo com que pessoas
que tiram os mesmos princípios políticos da Bíblia possam divergir a
respeito do que é possível fazer hoje no Brasil.
Vemos,
então, o valor fundamental da democracia como reflexo tanto da
antropologia cristã como do caráter de Deus expresso na maneira como
trata a humanidade desde o começo.
A
“comunhão” universal humana no pecado é uma das grandes justificativas
da democracia; ninguém (e nenhum grupo ou instituição) merece ter
poderes ilimitados e não supervisionados sobre seus semelhantes. Mas a
fé cristã se caracteriza também por um otimismo realista na
possibilidade de melhorar o mundo. Nas palavras de Reinhold Niebuhr, a
propensão humana para o bem torna a democracia possível, e a propensão
humana para o mal torna a democracia necessária! Ou seja, amar ao
próximo inclui a defesa da democracia.
E os evangélicos?
Os
evangélicos, munidos dessa teologia, deveriam ser o segmento menos
vulnerável a desvios antidemocráticos. Mas, às vezes, a nossa época é
vista como excepcionalmente desafiadora, devido ao acentuado pluralismo
de valores e de estilos de vida. Devemos lembrar que o pluralismo é
normal; só não é assim sob alguma forma de autoritarismo político. O
cristianismo se expandiu, por mais de trezentos anos, por um império
romano extremamente pluralista. Tal pluralismo não causou nos primeiros
cristãos o saudosismo por uma época mais uniforme, nem criou demandas
por um regime mais repressivo.
A
liberdade de expressão é um dos direitos mais fundamentais do ser
humano. Sem ela, não há como navegar pacificamente a extrema diversidade
de experiências humanas; não há como aprimorar a boa governança; e não
há como reconhecer a verdade e a ela responder em todos os campos,
inclusive o religioso. A necessidade dessa liberdade foi reconhecida
muito cedo na história cristã. Por volta do ano 200, o teólogo
Tertuliano disse: “É um direito humano fundamental, um privilégio da
natureza, que todo ser humano possa adorar segundo as suas próprias
convicções. A religião de uma pessoa não ajuda nem prejudica outra
pessoa”. Essa convicção foi lamentavelmente abandonada por boa parte do
cristianismo posterior, em aliança idólatra com o Estado.
Seria,
portanto, inusitado e esdrúxulo que evangélicos brasileiros hoje
quisessem fechar o processo democrático. Querer romper com a democracia é
idolatria do Estado! É idolatrar o poder estatal como solução. É como
querer separar o joio do trigo antes do tempo, é arrogar-se uma tarefa
que só pertence a Deus. Aqueles que querem derrubar o resultado das
urnas porque “o outro lado é comunista/fascista” estão traindo o
evangelho. E aqueles que querem derrubar o resultado das urnas porque
“houve fraude”, que apresentem provas e contestem de acordo com os
procedimentos do estado de direito.
A
democracia não existe para garantir a vitória do nosso lado nem da
nossa visão da sociedade. Ela existe para permitir a defesa continuada
de projetos diversos para a sociedade, inclusive o nosso.
Com
todas as imperfeições, a democracia brasileira permite a possibilidade
de apresentar um amplo leque de visões para o futuro do país. Aqueles
cristãos que se encantam por pretensas soluções não democráticas
deveriam recordar o ditado de Churchill, de que a democracia é o pior
sistema de governo já inventado, com exceção de todos os outros. A
distância no tempo nos faz romantizar os experimentos não democráticos
do passado (seja de esquerda ou de direita), procurando atalhos que se
revelam como pistas falsas. Tanto a história como a boa teologia cristã
nos confirmam isso.
As
democracias morrem quando os atores principais rejeitam as regras
democráticas do jogo; quando toleram ou encorajam a violência; quando
negam a legitimidade dos seus rivais; e quando expressam o desejo de
coibir as liberdades civis de seus adversários, inclusive na mídia. A
democracia brasileira talvez venha a morrer... mas que os evangélicos
não sejam nem seus assassinos nem seus coveiros!
Paul Freston,
inglês naturalizado brasileiro, é professor colaborador do programa de
pós-graduação em sociologia na Universidade Federal de São Carlos e
professor catedrático de religião e política em contexto global na
Balsillie School of International Affairs e na Wilfrid Laurier
University, em Waterloo, Ontário, Canadá.
Originalmente publicado na edição 398 de Ultimato.